Dedo podre ou a insistência do inconsciente em repetir histórias?
- Noele Gonzaga
- 12 de set.
- 3 min de leitura
Todo mundo conhece alguém que se descreve assim: “tenho dedo podre para escolher”. Sempre caio na mesma armadilha. Mudo de pessoa, de cenário, mas a história termina igual.
Às vezes vem em tom de piada, às vezes em desabafo. Mas a sensação é a mesma: viver um déjà-vu emocional. Como se houvesse um roteiro invisível que insiste em se repetir, mesmo quando juramos que da próxima vez será diferente.
Será mesmo azar? Ou será que existe outra lógica, mais profunda, que nos conduz a repetir?
A lógica da repetição
Na psicanálise, chamamos isso de repetição. O inconsciente não se orienta pelo que nos dá prazer ou bem-estar imediato, mas pelo que é familiar. Mesmo que doa, o conhecido exerce um magnetismo poderoso.
É como se, ao encontrarmos alguém que nos desperta esse “clique imediato”, não estivéssemos apenas escolhendo livremente, mas reconhecendo um território. Algo daquela pessoa - uma forma de olhar, uma dinâmica, um silêncio - toca numa memória antiga. E, sem perceber, nos lançamos em uma história que já conhecemos, ainda que com outro rosto.
Por que repetimos o que machuca?
A repetição é um movimento psíquico: buscamos reencontrar, nas relações atuais, aquilo que ficou mal resolvido em nossa história.
Se na infância experimentamos desamparo, distância, frieza ou excesso de exigência, podemos, na vida adulta, buscar parceiros que reproduzem esses cenários. Não porque gostamos de sofrer, mas porque inconscientemente existe a esperança de dar um final diferente para a mesma cena.
É como se disséssemos a nós mesmos: “dessa vez vai ser diferente”. Só que, na prática, muitas vezes não é. Sem consciência do padrão, acabamos encenando de novo a mesma peça, trocando apenas os atores.
O risco do roteiro invisível
A consequência é previsível: relações que começam com intensidade, mas escorregam para o mesmo ponto de dor. Um parceiro ausente, um vínculo desigual, a sensação de não ser suficiente.
E aí, mais uma vez, reforçamos a crença de que o problema está no azar, no destino ou no “dedo podre”. Essa crença, embora alivie a culpa momentaneamente, nos mantém presos no mesmo ciclo. Afinal, se é azar, não há nada a fazer.
A possibilidade de ruptura
Romper esse ciclo não é fácil, mas é possível. A primeira condição é reconhecer o padrão. Perceber que não se trata apenas do outro, mas de algo em nós que se repete.
Isso não significa assumir uma culpa individual, mas se implicar no processo: olhar para a própria história, reconhecer os enredos que se repetem e se perguntar que lugar ocupamos neles.
Na análise, esse movimento de reconhecimento abre espaço para algo novo. Quando conseguimos nomear o que está acontecendo, já não somos mais tão reféns do roteiro inconsciente. Surge a chance de escolher diferente: não por impulso, mas por consciência.
Atravessar o familiar
Muitas vezes, escolher diferente significa estranhar. Aquela relação em que tudo parece confortável de imediato pode não ser necessariamente a mais saudável. E aquela que, à primeira vista, soa menos “familiar” pode ser justamente a que abre espaço para um vínculo mais verdadeiro.
Esse estranhamento é fundamental. Porque, se o inconsciente busca o familiar, a ruptura exige coragem para suportar o desconforto do novo.
Dedo podre ou roteiro repetido?
Talvez seja hora de repensar a expressão “dedo podre”. Ela nos coloca em uma posição de azarados, quase vítimas do destino. Mas o que está em jogo não é azar, mas sim a força da repetição inconsciente.
E se, em vez de pensar em “dedo podre”, pensássemos em roteiros que se repetem até que possamos reescrevê-los? O problema não é a nossa capacidade de escolha, mas a forma como o inconsciente insiste em conduzir essa escolha para um território conhecido.
Para além da repetição
A psicanálise oferece algo essencial: a possibilidade de perceber os padrões que nos atravessam e de criar novas formas de viver o desejo.
Reconhecer que não é azar, mas repetição, é um primeiro passo. A partir daí, abre-se a chance de transformar a pergunta: não mais “por que sempre escolho errado?”, mas “o que em mim insiste em repetir essa escolha?”.







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